A BARBÁRIE EM BARRANCOS
Nos próximos três dias, os últimos de Agosto, regressa a barbárie a Barrancos.
As bebedeiras e os maus instintos de certa gente, irão projectar-se numa homenagem à bestialidade humana a que chamam toiros de morte.
A coisa não é nova, é um grande negócio há muitos anos, em Espanha e em outros países culturalmente subdesenvolvidos.
Em Portugal, com esta pestilenta pequenez mental de que somos feitos, temos tendência a copiar o que há lá fora, em vez de valorizarmos o que é NOSSO.
E por isso, durante muitos anos mataram-se toiros em Barrancos, vila fronteiriça do Alentejo, à imitação do que se faz em Espanha, até porque um povo que vive junto a uma fronteira, o melhor que tem a fazer para estimar a sua identidade, é imitar os que se encontram do outro lado…
Como era proibido matar os bichos em espectáculos faziam-se manobras de fuga ao cumprimento da Lei das mais ridículas que se possam imaginar, tanto para quem as fazia como para quem as consentia.
E como foi que se resolveu o problema?
Pois foi com a criação de um Regime de Excepção, que o poder político produziu em 2002.
E pronto: já se podem matar toiros em espectáculos públicos em Portugal.
Que maravilha!
A seguir, podemos invocar uma qualquer tradição e começar também a fazer lutas de morte de galos, de cães, sei lá, de tudo o que vier à cabeça.
Por isso é que eu entendo, que em 5 de Outubro de 2010, não vamos comemorar cem anos de República; vamos apenas contar um século sobre a abolição da Monarquia,
Sem Anos de República
Eu fiz o que podia: escrevi para a imprensa os dois textos que se seguem, em Agosto de 2000.
Não valeu a pena.
Este País não merece que se escrevam coisas destas.
MAS MERECEM OS ANIMAIS.
E MERECEM AS PESSOAS QUE OS RESPEITAM.
E MEREÇO EU.
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BARBÁRIE EM BARRANCOS
É costume dizer-se que uma imagem vale por mil palavras. E por pensar que assim é, guardo muitas imagens das melhores (isto é, das que eu tomo por melhores), de entre as que a Imprensa nos oferece.
Do Expresso, de 4 de Setembro de 1999, tenho guardada a REVISTA inteira, por razões de vária ordem que não vêm aqui ao assunto destas linhas.
Se outras razões não houvesse, era capaz de tê-la guardado só por duas imagens, a duas páginas, 6-7 e 8-9, de entre outras, que relatam os acontecimentos de Barrancos do Domingo anterior, em razão dos quais, fazedores de opinião e autoridades se revezaram e completaram em declarações e atitudes que nos envergonharam a todos, os que guardamos o devido respeito aos animais e às pessoas que nos ouvem.
A mais elucidativa das imagens, é a que ocupa as páginas 6 e 7: em primeiro plano, tem um homem de estatura mediana, vestido de toureiro, que segura uma capa vermelha na mão esquerda, enquanto a direita se vê erguida, em jeito de saudação/agradecimento, que se dirige a uma mole de gente ululante, que, em segundo plano, parece festejar ou enaltecer qualquer coisa, numa pose meio vitoriosa meio bêbeda. Pelas roupas que vestem, vê-se claramente que não são os que costumam encher as bancadas dos redondéis da tourada à portuguesa. Ou pelo menos, não são os que costumam encher as primeiras bancadas, já para não falar dos camarotes, onde é suposto estarem os mais fiéis e aguerridos aficcionados. De resto, aqui em Barrancos, pelas centenas de garrafas de plástico e embalagens de gelados que se encontram no chão, por debaixo dos pés do toureiro e dos “aficcionados”, vê-se logo de que malta se trata.
À direita do suposto toureiro, na página 7, está um animal preto, com forma de touro e volume de bezerro, talvez com cerca de trezentos quilos de peso, no máximo. O animal, que a julgar pela pose dos humanos acima descritos estaria morto, TRIUNFALMENTEMORTO!!!, está apenas deitado: deitado, ofegante, de língua de fora, tem dois objectos espetados no lombo, uma bandarilha e uma espada, mas não está morto coisa nenhuma. Está apenas deitado, exactamente na posição em que se deita no pasto, quando quer descansar.
A bandarilha, está vergonhosamente colocada. E a espada, no local onde espetou o animal e com a inclinação que levou ao penetrá-lo, jamais o mataria, a menos que fosse por laceração pulmonar, ou por uma longa e agonizante hemorragia interna, por rotura de qualquer grande vaso. Se isto é matar um toiro em arena, então eu sou o Alexandre Magno.
Aquele animal, nem está morto, nem é um touro. Está ferido e exausto de cansaço, e é um pobre novilho.
E se dúvidas houvesse, lá estaria a imagem das páginas 8 e 9: onze indivíduos, estão sentados num troco de árvore que faz parte da tronqueira que serve de arena, que se situa a cerca de 80 centímetros do chão. E há um, que nem sequer toma lugar na tronqueira, mantendo os pés no chão, junto aos pés de um outro novilho, que ainda não tem nenhum objecto espetado no corpo, de onde se supõe que esteja acabando de entrar em “praça”, e portanto supostamente fresco e senhor de toda a sua força. Se aquilo é um touro, então eu sou o D. Afonso Henriques.
Por favor, este ano, Senhores Ministros, Senhores Comandantes da G.N.R., Senhores fazedores de opinião, aconteça o que acontecer em Barrancos, por favor, calem-se. Se não fizerem cumprir a Lei, não ofendam a minha inteligência. Por favor…
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Barrancos...
de La Fontaine
Os touros de morte de Barrancos, fazem lembrar uma das fábulas de La Fontaine, em que uma rã se pôs a olhar para os bois que vinham beber água ao lago onde ela vivia, e se lembrou de que queria ser como um boi. Melhor, convenceu-se que podia ser um boi, desde que descobrisse uma forma de ficar do tamanho deles. E então, afigurou-se-lhe que bebendo muita água, bebendo e bebendo cada dia mais, havia de transformar-se num boi. E assim fez, até que, inevitavelmente, acabou por rebentar.
Os touros de barrancos, não são touros: são uns novilhotes “sub-trezentos”. E não são “de morte”, porque são desajeitadamente espetados por uns rapazes que vêm de Espanha, talvez alunos de alguma escola de toureio, mas que não são matadores. Porque nem um matador vinha perder o seu tempo a uma vilazita raiana para estocar três ou quatro bois na clandestinidade, nem a Comissão de Festas de Barrancos lhes poderia pagar o que eles cobrariam normalmente. Basta analisar com atenção umas fotografias que foram publicadas na Revista do Expresso do primeiro Sábado de Setembro de 1999, em que se vê a algazarra da suposta estocada num animal que está deitado mas muito longe de estar morto, para se ver que qualquer pessoa que se diga e se sinta aficcionada ou qualquer indivíduo que goste de se paramentar de toureiro, devia envergonhar-se de ser fotografado junto daquele infeliz “Miura”(leiam Miguel Torga, por favor).
Para justificar o não cumprimento da Lei, invoca-se uma suposta tradição de trezentos anos. E não é difícil imaginar Barrancos há trezentos anos, sem saber muito bem se era Portugal ou Espanha, propriedade de um só dono e senhor, lavrador ou bispo, senhor e dono de toda a terra, de todos os bichos e de todas as pessoas, que, uma vez por ano, associando-se a uma festa de motivação religiosa, que outras não havia por ali naquele tempo, oferecia, “generosamente” um ou dois bezerros para que fossem comidos por aquele povo servo e faminto, como se isso bastasse para aliviá-Lo da fome e das injustiças com que era tratado durante todo o ano. E compreende-se que, estando ali naquele meio mundo entre Portugal e Espanha, o Povo se lembrasse de juntar ao repasto uma faiena à espanhola, de forma que a própria morte dos bezerros fizesse parte da festa. È isso que se invoca hoje, quando se fala de tradição? A servidão? A fome? A escravatura? Não seria melhor esquecer tudo isso de uma vez?
São isso, os chamados touros de morte de Barrancos: um costume antigo, remanescença de um instrumento de servidão, com o tempo transformou-se em festa típica regional. Depois, desafiando a Lei, transformou-se em uma certa espécie de cartaz turístico, que o Dr. Salazar preferia fingir que não via, para não criar ali um polo de adversários naturais do regime, junto à fronteira. E agora, com o surgimento dos movimentos de defesa dos animais, sinal de uma certa modernidade que faz parte incontornável do Estado civilizado que nos queremos, transformou-se numa questão nacional.
Na tal tradição antiga, os bois eram mortos, assados e comidos ali no local da festa; hoje, são vendidos. O que demonstra que, afinal, até mesmo em Barrancos, a tradição… já não é o que era…
Barrancos, não tem nenhum argumento provido de sentido de Estado que lhe permita pensar que pode colocar-se à parte da Lei.
Qual rã de La Fontaine, os novilhos de Barrancos, insuflados pelo compreensível e respeitável bairrismo dos Barranquenhos, e mediatizados pela inqualificável gestão que os políticos têm feito do assunto, correm o risco de transformar-se numa fábula de mau gosto, que nos há-de envergonhar a todos, incluindo aos Barranquenhos.
Sobretudo aos Barranquenhos.